1) Morfologia e Estrutura
Enterococcus faecalis são bactérias Gram-positiva presentes na microbiota humana e de outras espécies animais. Entretanto, podem comportar-se como agentes infecciosos, principalmente em pacientes que apresentam fatores de riscos. Enterococcus faecalis são cocos de tamanho 0,6-2,5 µm, arranjam-se em pares e curtas cadeias, apresentando morfologia ovóide. São classificadas como anaeróbicas facultativas, com catalase negativa, crescem em uma ampla faixa de temperatura (10º a 45º), sendo 35° a temperatura ideal e Ph alcalino (4,6 a 9,9). Sobrevivem em ambientes com concentração 6,5% de cloreto de sódio (NaCl), a 60ºc por 30 minutos, fazem hidrólise da esculina na presença de 40% de sais biliares e hidrolisam pirrolidonil- ß- naftilamida (LAP).
Pertencem ao grupo D devido a presença de antígeno de parede celular D, o ácido teicóico glicerol. A glicose é metabolizada por fermentação e o ácido lático é o principal produto do metabolismo, por isso são referidas como bactérias láticas. Além disso, multiplicam-se bem em ágar-sangue, podendo se apresentar sem hemólise, α‑hemolíticas, ou raramente β‑hemolíticas.
Ácido lático é o principal produto do metabolismo, por isso são referidas como bactérias láticas. Além disso, multiplicam-se bem em ágar-sangue, podendo se apresentar sem hemólise, α‑hemolíticas, ou raramente β‑hemolíticas.
2) Mecanismos de patogenicidade
Patogenicidade é a capacidade de determinado agente biológico causar doenças em um hospedeiro suscetível, muito relacionada à virulência. As bactérias E. faecalis são classificadas como patógenos secundários, pois infecções normalmente ocorrem apenas quando a imunidade do hospedeiro está baixa, entretanto, existem estudos que também relacionam a patogenicidade e virulência da E. faecalis a mutações genéticas dessas bactérias. Dentre os fatores conhecidos que influenciam na patogenicidade e virulência dessa bactéria estão: Resistência a antibióticos, produção de hemolisina, gelatinase, substâncias de agregação, proteínas de adesão, DNAse e termonuclease.
Uma das grandes determinantes da virulência e da resistência a drogas dessa bactéria é a relação genética de muitas mutações, considerando que até ¼ do material genético delas consiste em DNA móvel e de outras bactérias, resultando em grandes taxas mutacionais que podem refletir na gravidade das infecções. Aliado a isso, está a produção de uma substância de agregação pelas bactérias que facilita a geração de grandes colônias, a troca de plasmídeos e a formação de biofilmes (comunidades organizadas de células, que permitem a sobrevivência em condições limitantes e de estresse nutricional).
Uma das proteínas conhecidas relacionada à virulência da E. faecalis é a citolisina, produzida por essas bactérias e que tem função de lise das células humanas, podendo afetar tanto as células do TGI quando os eritrócitos humanos. Além dessa proteína, também foi encontrada a produção de proteínas de adesão à colágeno e gelatinase (hidrólise de colágeno). Além disso, essas bactérias se ligam às células dos hospedeiros por meio de uma substância ligante, tornando-os resistentes à fagocitose e essa associação estimula proliferação de células T e liberação de fator de necrose tumoral, ativando liberação de ácido nítrico que resulta em destruição celular e aumentando mais ainda a reação inflamatória. Em situações de infecções longas endodônticas em que a quantidade de nutrientes é baixa, essas bactérias liberam hialuronidase para formar ácido hialurônico e se nutrem dele, permitindo que essa infecção se perpetue.
3) Cultura e/ou Diagnóstico laboratorial
Por serem cocos gram-positivos, os E. faecalis são exemplos de bactérias frequentemente isoladas de amostras clínicas. Além disso, desenvolvem-se facilmente em meios não seletivos. Podem ser usados para o isolamento: O Ágar sangue, que compreende um meio enriquecido com sangue animal e propicia o crescimento da maioria das bactérias de interesse clínico.
E o ágar Chocolate, que consiste em um meio enriquecido com um determinado suplemento de forma a favorecer o crescimento de diversos patógenos fastidiosos isolados de materiais clínicos.
Após o isolamento utilizando as técnicas supracitadas, o E. faecalis pode ser diferenciado por reações bioquímicas simples, como: A prova da catalase, que deve ser o primeiro teste a ser realizado, pois permite separar, imediatamente, os estafilococos dos estreptococos e enterococos, sendo os últimos a apresentarem reação negativa.
Outro teste importante a ser realizado é da sensibilidade à optoquina, devido às semelhanças entre o S. pneumoniae e o E. faecalis. Assim, é utilizado para diferenciá-los, pois este último apresenta resistência ao teste.
O teste da bile-esculina é realizado para diferenciar os estreptococos do grupo D e os enterococos dos demais estreptococos. Nessa prova ocorre a hidrólise da esculina em meio de sais biliares, apresentando cor escura caso tenha reação positiva.
Existe também o teste PYR que determina a atividade da enzima Pyrrolidonil Arilamidase produzida pelo S. pyogenes, mas não pelos demais estreptococos β-hemolíticos. Neste teste os S. pyogenes e os Enterococcus spp. apresentam reação positiva.
Portanto, cocos Gram‐positivos arranjados em pares e cadeias curtas, que apresentam reação à catalase negativa e reação à PYR positiva, podem ser identificados como enterococcus. No entanto, outros testes se fazem necessários para diferenciar E. faecalis de E. faecium, que podem ser diferenciados clinicamente pela exposição à antibióticos, sendo os E. faecalis menos propensos a desenvolver resistência.
4) Patogênese, Patologia e Tratamento
4) Patogênese
Enterococcus faecalis pertence à microflora comensal intestinal, da cavidade oral e do trato genital feminino. Por ser um potencial patogênico em vários locais do corpo, causa infecções oportunistas com maior prevalência em indivíduos hospitalizados em estado grave, geralmente submetidos a procedimentos invasivos e tratamentos prévios com antibióticos de largo espectro.
Para haver infecção por E. faecalis, é necessário o processo de colonização das bactérias nas membranas mucosas, que se fixam às células alvo por meio das adesinas. Após essa etapa, o microrganismo consegue invadir outras regiões do organismo até alcançar o sistema linfático ou circulatório e, assim, produzir diversas patologias.
Na presença de elevadas quantidades de E. faecalis, os níveis de gelatinase aumentam, de modo que o colágeno hidrolisado pela gelatinase por ação do E. faecalis possa estar relacionado à patogênese e progressão de lesões apicais.
A produção de hialuronidase por E. faecalis facilita a disseminação das bactérias, de maneira a auxiliar a propagação de infecções. Outro fator importante como a proteína codificada pelo gene ESP, detectada em bacteremias, é participante e atuante da formação do biofilme, auxiliando as bactérias a resistir ao efeito bactericida de medicações, como o hidróxido de cálcio.
A resposta inflamatória exacerbada do hospedeiro, induzida por E. faecalis e seus fatores de virulência, estimula o dano tecidual.
4) Patologia
4.1) Endocardite Infecciosa
Atualmente E.faecalis é considerado um dos principais causadores de endocardite infecciosa (EI) contraída em hospitais. Tal doença infecciosa ocorre por meio de invasão do tecido endocárdico, que alcança as válvulas do coração ou do revestimento interno, podendo gerar destruição valvular e, por consequência, morte.
Vários fatores de virulência estão associados com este tipo de infecção. Como exemplo, destaca-se a proteína de superfície Ace, que interage com o colágeno, promovendo uma rápida agregação celular. Ainda, a substância de agregação (AS) é outra proteína de superfície relacionada com a endocardite, mediando a aderência da bactéria às células do hospedeiro e promovendo a formação de vegetações e produção precoce de biofilme. Essa substância de agregação não é inerente ao desenvolvimento de EI, mas em modelos animais relatados em estudos, a endocardite por E. faecalis mostrou maiores vegetações e maiores cargas bacterianas na presença de AS. Observa-se também a secreção de protease, gelatinase e expressão da proteína extracelular de superfície (esp), que contribuem para a formação de vegetações bacterianas e são fatores que auxiliam na formação de biofilme, dificultando a ação do sistema imunológico e de antibióticos a tais bactérias.
4.2) Infecção do Trato Urinário
A infecção do trato urinário (ITU) é uma das causas mais comuns de infecção na população em geral, apresentando uma prevalência cada vez maior em pacientes internados em unidades hospitalares. Em ambiente hospitalar 80% das ITU são provocadas pelo uso de um cateter urinário permanente, sendo a maioria delas diagnosticadas por um bacteriúria assintomática. Nestes casos a probabilidade de adquirir a infecção depende do método, do tempo de permanência do cateter, dos cuidados hospitalares e da suscetibilidade do doente. As ITU associadas a cateteres, geralmente, são adquiridas por pacientes de idade avançada ou em estado debilitado.
O trato urinário é a região mais comum de infecções enterocócicas, frequentemente associadas à cateterização ou à instrumentação urinária. A ITU pode ser assintomática, cistite não complicada ou cistite associada à pielonefrite.
4.3) Infecções Endodônticas
Enterococcus faecalis tem sido reportada como sendo uma das principais causas microbianas dos insucessos em tratamentos endodônticas. Por vezes, podem ser isolados em baixos níveis na mucosa oral de indivíduos saudáveis, mas a sua frequência ocorre predominantemente em estado de infecção, sendo um problema devido à bactéria apresentar significativa resistência a substâncias químicas utilizadas nos procedimentos de limpeza e desinfecção dos canais obturados.
A E. faecalis ao aderir-se e ao invadir os tecidos, consegue se multiplicar e resistir aos mecanismos de defesa do hospedeiro e a outras espécies bacterianas por meio de seus fatores de virulência. Destaca-se como um importante fator de virulência a proteína extracelular de superfície (esp), que participa na formação de biofilme, auxiliando as bactérias a resistirem ao efeito bactericida de medicações, como o hidróxido de cálcio.
5)Tratamento
O tratamento varia de acordo com o local da infecção e teste de sensibilidade.
Em relação à endocardite enterocócica, a grande maioria dos E. faecalis clínicos isolados permanecem suscetíveis à penicilina e ampicilina e, consequentemente, esses antibióticos continuam sendo uma parte muito importante do arsenal terapêutico contra essa espécie. Uma questão mais desafiadora tem sido o desenvolvimento de resistência de alto nível aos aminoglicosídeos (HLRAG), como gentamicina e estreptomicina. A resistência à ampicilina e vancomicina é rara e incomum, respectivamente, em isolados de E. faecalis e esses até o momento estão suscetíveis à ampicilina.
Em relação à infecções do trato urinário, não requerem terapia bactericida, e se o organismo causador for sensível, geralmente são tratados com um único antibiótico, como ampicilina.
6) Prevenção e Educação em saúde
A bactéria Enterococcus faecalis apresenta caráter oportunista, assim, fatores como a idade, o estado de imunidade, qualquer patologia subjacente, e as intervenções a nível de diagnóstico e terapêuticas aplicadas são alguns dos determinantes para analisar maior probabilidade de infecções. As crianças, idosos e imunodeprimidos são grupos de maior risco, devido à sua menor resistência.
Para a prevenção das infecções ocasionadas pelo Enterococcus faecalis é essencial a realização de todos os cuidados básicos interpessoais e higiênicos. Dessa forma, a higienização das mãos constante é de suma importância, pois constitui uma ação simples, rápida e fundamental para a redução das infecções, tendo em vista que as mãos são um veículo muito comum de transmissão cruzada de patógenos. A higiene adequada da região íntima e as micções frequentes também são outras medidas necessárias para reduzir os riscos de infecções causadas pelo Enterococcus faecalis.
No ambiente hospitalar, essa bactéria representa uma das maiores causas de infecções a nível mundial, já que esse local é um grande reservatório de microrganismos e o E.faecalis pode ser encontrado na água, áreas úmidas, além de equipamentos médicos, alimentos ou mesmo em partículas do ar. Tal realidade demanda uma desinfecção constante desses ambientes, além de esterilização de materiais médicos para reduzir as contaminações por tal agente infeccioso.
Além desses métodos de prevenção para reduzir as chances de infecção, a restrição do uso indiscriminado de antibióticos é fundamental para impedir a disseminação de microrganismos resistentes. Nas últimas décadas, o E.faecalis tem demonstrado elevadas capacidades de aquisição de múltiplas resistências, o que o torna um patógeno multirresistente a quase todos os antibióticos, sendo, desse modo, indispensável a utilização racional desses medicamentos.
7) Caso clínico
L.V.P., 8 anos e 3 meses, masculino, natural e procedente de zona rural, com leve quadro de desnutrição, chegou ao H.R.T.M com queixa de dificuldade ao urinar após queda de cavalo. Exame físico identificou inflamação na região da uretra membranosa. Paciente encaminhado para introdução de cateter vesical e se deu início à administração de anti inflamatórios e internado na enfermaria devido a não ter condições de urinar em domicílio.
Após dois dias com medicação e auxílio do cateter para urinar, paciente evoluiu bem, recebendo alta.
Uma semana depois, paciente retorna ao H.R.T.M em estado febril, com calafrios, queixa de ardência ao urinar e fraqueza. Foi então solicitado uma cultura da urina e iniciou-se tratamento com antibiótico de largo espectro e aconselhamento de repouso e alta hidratação, paciente evolui bem.
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